Artigo publicado originalmente na revista Capital Aberto. Clique aqui para conferir
A governança em empresas familiares frequentemente enfrenta o desafio de compreender e preservar a separação entre o patrimônio da sociedade e o patrimônio pessoal dos sócios. É normal neste segmento que o bolso direito, do patrimônio pessoal, e o esquerdo, da empresa, não tenham distinção de tratamento. Na prática, frequentemente, tudo é tratado como se fosse a mesma coisa.
Esse cenário torna-se ainda mais complexo quando essa prática se torna um hábito geracional e a linha que separa o patrimônio pessoal dos acionistas e o patrimônio da empresa se torna tênue, ou inexistente. Aqui encontra-se a caracterização do que chamamos de confusão patrimonial, em que o patrimônio da empresa é tratado como propriedade pessoal dos sócios de maneira desregrada.
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Embora existam inúmeros mecanismos sofisticados para proteção patrimonial, como holdings e offshores, o passo mais eficaz – e frequentemente mais acessível – é assegurar a separação patrimonial por meio da implementação de práticas adequadas de governança corporativa.
A grande vantagem da personalidade jurídica, o “CNPJ”, é a ficção jurídica criada para fomentar o empreendedorismo: o CNPJ passa a ter nome próprio, com direitos e obrigações próprias, bem como patrimônio separado dos de seus sócios. Assim, caso nenhum sócio ande fora da linha (como exemplificaremos abaixo), sua responsabilidade caso as coisas desandem é limitada ao patrimônio da sociedade, de modo a incentivar e proteger o empresariado.
Para melhor exemplificar quais situações que de fato configurariam a confusão patrimonial, podemos citar a aquisição de veículos pela empresa para uso pessoal dos sócios ou familiares, o uso de cartões de crédito empresariais para fins particulares, o pagamento de funcionários domésticos com recursos corporativos (ou mesmo a inclusão destes na folha da empresa), a obtenção de passagens de férias pela empresa, ou a concessão de garantias pela empresa para empréstimos ou obrigações financeiras pessoais dos sócios.
Essas práticas, dentre outras, criam um ambiente de vulnerabilidade tanto para a empresa – afetando diretamente sua estabilidade financeira, reputação e limitando seu potencial de crescimento – quanto para os sócios, indo além da esfera financeira, com riscos legais e fiscais relevantes.
A partir do momento em que o bolso do CNPJ e o bolso do CPF são utilizados da mesma maneira, para benefício pessoal dos sócios, a separação patrimonial (que é a grande vantagem da pessoa jurídica, conforme explicamos) não é respeitada. Ora, se o sócio não respeita a ficção jurídica criada para o seu benefício, por que credores ou juízes deveriam continuar a respeitar?
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Por essa razão, foi criado o mecanismo de desconsideração da personalidade jurídica, permitindo que a forma como o sócio tratou os bens da empresa seja aplicada também aos seus credores e as obrigações assumidas pela empresa podem se estender aos bens pessoais dos sócios.
Os precedentes existentes reforçam a gravidade dessa questão, mas há histórias de sucesso que mostram que empresas que enfrentaram tais questões e posteriormente implementaram práticas de governança adequadas conseguiram não apenas superar esse tipo de problema, mas também se posicionar de maneira competitiva no mercado, como o caso de uma rede famosa de fast food brasileiro.
Uma governança corporativa eficiente é o antídoto para evitar inúmeros problemas, dentre eles a configuração de confusão patrimonial. A separação clara entre os interesses empresariais e os patrimônios pessoais dos sócios deve ser priorizada como estratégia essencial, precedendo a implementação de estruturas mais sofisticadas.
Políticas internas bem definidas, como a restrição do uso de recursos corporativos para fins privados, a instituição de conselhos independentes, a adoção de auditorias regulares e a formalização de acordos de acionistas que abordem questões financeiras e econômicas, como limites para a distribuição de dividendos, reinvestimento mínimo e políticas de despesas, são medidas fundamentais para garantir essa separação.
Há inúmeros instrumentos além dos citados que podem ser eficazes na promoção da transparência e da disciplina financeira, sendo que a escolha de quais implementar dependerá do perfil de cada empresa. Vale ressaltar que de nada vale um ótimo planejamento se esse não sair do papel.
A segregação entre o patrimônio pessoal e empresarial transcende a conformidade legal, representando um pilar fundamental para a longevidade e o sucesso das empresas familiares. A mudança de hábitos pode ser desafiadora, mas quando os sócios compreendem a importância dessa separação, a organização se fortalece, ganhando não apenas estabilidade financeira, mas também credibilidade junto ao mercado, atraindo novos players que valorizam uma casa organizada.
Empresas que investem em governança corporativa sólida criam as bases para um crescimento sustentável, protegendo seu legado e garantindo não somente a sobrevivência, mas a sua relevância e triunfo nas próximas gerações.