25.10.2024
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Perdas não técnicas de energia elétrica na Reforma Tributária

Este breve artigo relacionará uma das principais discussões tributárias enfrentadas pelas distribuidoras de energia elétrica com as mudanças decorrentes da reforma da tributação do consumo. Essa discussão envolve as perdas não técnicas de energia elétrica.

Antecipando os pontos a serem tratados a seguir, procuraremos explicar:
(i) o que são as perdas não técnicas
(ii) qual a controvérsia atual envolvendo PIS e COFINS e
(iii) como evitar que essa controvérsia se prolongue no contexto em que IBS e CBS passem a ser exigidos.

Compreendendo as perdas não técnicas

Embora comumente associadas a furtos ou “gatos”, as perdas não técnicas apresentam maior complexidade. Essa espécie de perda não possui causas específicas ou passíveis de determinação exata. Isso porque representam uma diferença, um montante residual.

Na regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, as perdas não técnicas são a diferença entre as perdas totais de energia elétrica e as perdas definidas como “técnicas”.

As perdas técnicas, essas sim, são específicas, na medida em que decorrem de percentuais definidos pela ANEEL para refletir a dissipação da energia por fatores físicos (conversão da eletricidade em calor, por exemplo).

Devido a esses fatores físicos, é impossível que toda a energia elétrica injetada no sistema de distribuição (medida em MWh) efetivamente chegue nos pontos de consumo. Ocorre, portanto, uma “perda” entre o montante injetado e o montante que é efetivamente faturado pela distribuidora junto aos consumidores.

No entanto, essa diferença não é explicada apenas por fatores físicos inerentes ao “transporte” de energia. A parcela que excede a perda não técnica é, então, denominada perda não técnica, recebendo um tratamento regulatório específico.

Suas causas, como mencionado, são diversas: podem decorrer de furtos, mas também podem ser atribuídas a erros de medição ou erros de faturamento, todas situações em que houve fornecimento de energia, sem que a distribuidora, no entanto, realizasse a cobrança correspondente.

Por certo, as perdas não técnicas não são desejáveis. Ainda assim, representam uma realidade imposta por características socioeconômicas e mesmo culturais de nosso país.

Não é o caso de detalhá-las. Basta ver que a regulamentação prevê um tratamento detalhado a seu respeito, sendo importante notar a definição de percentuais regulatórios de perdas não técnicas que são repassadas na tarifa de energia elétrica, paga por todos os consumidores.

As distribuidoras de energia devem adotar medidas para combater as perdas não técnicas para adequá-las a esse referencial regulatório. De outra forma, acabam por suportar o ônus decorrente dessas perdas.

Estorno de créditos de PIS/COFINS relacionado às perdas não técnicas

Para este breve texto, esses comentários simplificados sobre a disciplina regulatória das perdas não técnicas são suficientes. Cabe, agora, detalhar qual a consequência tributária que nos interessa neste momento.

Afinal, as perdas não técnicas geram discussões tributárias sobre a sua dedutibilidade na apuração do lucro real e da base de cálculo da CSLL . Todavia, o que nos interessa é o reflexo para fins de PIS e COFINS.

No ambiente de contratação regulado, as distribuidoras de energia realizam a aquisição e a revenda de energia elétrica, devendo assegurar quantidade suficiente para fazer frente ao consumo dos usuários, ainda que parte do montante adquirido venha a ser pedido em razão das perdas detalhadas acima.

Ainda assim, toda a energia adquirida para revenda permite a apropriação de créditos de PIS e de COFINS para a distribuidora sujeita ao regime de não cumulatividade. Historicamente, a apropriação desses créditos foi realizada sem qualquer diferenciação em relação às perdas, fossem elas técnicas ou não técnicas, contando, inclusive.

Solução de Consulta Cosit n° 17

A partir de 2016, no entanto, a Solução de Consulta Interna COSIT nº 17 marcou mudança no entendimento das autoridades fiscais, que passaram a exigir estorno dos créditos de PIS e de COFINS em relação à parcela da energia adquirida objeto de perdas não técnicas.

O fundamento utilizado pelas autoridades fiscais é o parágrafo 13º do artigo 3º da Lei nº 10.833/2003, segundo o qual deve ser realizado estorno de créditos no caso de os bens que geraram o crédito serem “furtados ou roubados, inutilizados ou deteriorados, destruídos em sinistro”.

Nesse novo cenário, diversas distribuidoras de energia elétrica passaram a ser autuadas pela Receita Federal, com glosa de créditos e exigência de PIS e COFINS supostamente recolhidos a menor. Diversas dessas autuações seguem discutidas no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF ou perante o Poder Judiciário.

Existem diversos argumentos para sustentar a inaplicabilidade desse dispositivo legal, tais como a existência de repasse das perdas não técnicas (aumentando as receitas passíveis de tributação) ou o fato de essas perdas não estarem limitadas às situações indicadas acima (ou seja, a norma correspondente não seria plenamente aplicável às perdas não técnicas).

No entanto, diversas distribuidoras, após uma primeira leva de autuações, passaram a realizar estornos de créditos de PIS e COFINS em relação às perdas não técnicas antes de novos questionamentos.

Teriam as distribuidoras concordado com o entendimento da Receita Federal? A nosso ver, não é uma questão de concordância, mas de buscar uma solução alinhada minimamente à lógica econômica. Como mencionado, perdas não técnicas regulatórias são repassadas na tarifa de energia, ou seja, quem arca com o ônus dessas perdas são os consumidores.

Esse não é o único repasse tarifário admitido pela regulamentação da atividade de distribuição. Considerando a classificação como “tributo indireto”, o PIS e COFINS pagos pelas distribuidoras de energia também são objeto de repasse, sendo suportados pelos consumidores.

Trata-se de prática assegurada em contratos de concessão, de modo geral, e que foi validada pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ ao analisar o Tema Repetitivo nº 428.

No caso das distribuidoras de energia, o repasse do PIS e COFINS é homologado pela ANEEL a partir de cálculos da alíquota efetiva das contribuições pagas pela concessionária. Negar a apropriação de um crédito ou exigir o seu estorno significa aumento dessa alíquota efetiva.

Logo, há um aumento em relação ao repasse de PIS e COFINS e, por consequência, um aumento do custo da energia elétrica arcada pelos consumidores cativos. Em outras palavras, um entendimento da Receita Federal questionável sobre a tributação das perdas não técnicas acaba encarecendo a energia elétrica no Brasil.

As perdas não técnicas na Reforma Tributária

Esse é o cenário já observado atualmente, mas a Reforma da Tributação do Consumo cria um novo risco de que esse custo venha a ser novamente aumentado. Não é o caso de detalhar todas as inovações trazidas pela Emenda Constitucional nº 135, cuja regulamentação está sendo discutida no Congresso Nacional (em especial, o PLP nº 68/2024).

Sobre a Reforma, basta ver que o PIS e a COFINS, em conjunto com outros tributos, serão substituídos pelo IBS e pela CBS. Embora atribuídos à competência de diferentes entes (Estados/municípios e União, respectivamente), IBS e CBS compartilharão fatos geradores, bases de cálculo, além de regras de não cumulatividade e apropriação de créditos.

Daí a preocupação de notar, no artigo 28, parágrafo 7º, do PLP nº 68/2024, previsão muito semelhante àquela observada na legislação atual de PIS e COFINS: o contribuinte deve estornar os créditos de IBS e CBS “caso o bem adquirido venha a perecer, deteriorar-se ou ser objeto de roubo, furto ou extravio”.

Essa preocupação não está relacionada ao conteúdo dessa previsão, tomado isoladamente. Isso porque a exigência de estorno busca refletir uma quebra na cadeia comercial: um bem adquirido em uma operação tributada que venha a ser furtado não será mais objeto de uma posterior revenda, assim como também poderá mais ser empregado na produção de outro bem ou na prestação de um serviço.

Para aquele bem furtado, não haverá uma etapa subsequente passível de tributação, o que justificaria o estorno de créditos.

A preocupação existe porque previsão semelhante vem sendo, como visto, empregada pela Receita Federal para estornar créditos de PIS e COFINS em decorrência de perdas não técnicas de energia. Mantendo esse racional no contexto de implementação da Reforma, não só a Receita Federal, em relação à CBS, como Fiscos estaduais e municipais passarão a exigir estorno semelhante em relação ao IBS.

Elevação das aliquotas de IBS e CBS

E por que essa perspectiva gera preocupações adicionais? Ora, sem a manutenção de créditos em relação a toda a energia adquirida, as alíquotas efetivas de IBS e CBS apuradas pelas distribuidoras serão elevadas, implicando aumento do custo da energia suportado pelos consumidores. No regime não cumulativo, PIS e COFINS possuem uma alíquota combinada de 9,25%. Por outro lado, a expectativa é de que as alíquotas de referência de IBS e CBS totalizem 26,5%.

Ainda que os efeitos a Reforma Tributária na composição do preço da energia praticado para consumidores cativos sejam influenciados por diversos outros fatores, há um receio justo de que certas previsões do PLP nº 68, associado ao entendimento hoje adotado pela Receita Federal para as perdas não técnicas, gerem efeitos extremamente prejudiciais.

Felizmente, existe uma solução simples que evita o prolongamento das discussões sobre perdas não técnicas próprias ao PIS e à COFINS para um cenário de adoção de IBS e CBS, assim como alivia, por consequência, eventuais aumentos na tarifa de energia elétrica. Objetivamente, basta que o PLP nº 68 afaste expressamente a aplicação do artigo 28, parágrafo 7º, para os casos envolvendo perdas não técnicas.

A rigor, trata-se apenas de um esclarecimento, uma vez que a natureza multicausal das perdas não técnicas já não está abrangida integralmente por todas as hipóteses indicadas naquele dispositivo. Além disso, o fato de as perdas não técnicas regulatórias serem repassadas na tarifa de energia indica que, mesmo no caso de furto, não houve interrupção da cadeia comercial.

Em virtude de previsões contratuais e do arcabouço regulatório, o custo incorrido na aquisição da energia contínua gerando obtenção de receita, via repasse tarifário. Nessa situação específica, não parece lógico exigir estorno de crédito. No entanto, considerando o posicionamento da Receita Federal, não é possível se contentar com a lógica: é preciso previsão expressa sobre as perdas não técnicas.

Felizmente, existem parlamentares já se inteiraram do tema e propuseram emendas ao PLP nº 68, afastando o estorno em relação às perdas não técnicas regulatórias, justamente aquelas que são objeto de repasse tarifário . É preciso que a compreensão desse problema seja difundida, atraindo o engajamento necessário para evitar que uma Reforma que propõe resolver problemas não gere o nocivo efeito de aumentar o custo da energia elétrica dos brasileiros.

Por certo, essa não é a única forma de resolver o problema apontado neste artigo. Existem outras alterações no PLP nº 68 que estão sendo discutidas no Senado Federal (como a criação de mecanismos de diferimento em operações com energia) que também alcançariam resultados satisfatórios. No entanto, esse é um tema para outro momento.

Este artigo também foi publicado no site do Canal Energia. Clique aqui para conferir.

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