O PL 3/2024, iniciativa oriunda do Poder Executivo para “aprimorar o instituto da falência” ao alterar a Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência – LRF), a qual foi recém e amplamente reformada pela Lei nº 14.112/2020, contando com mudanças em mais de cem artigos, chama a atenção não apenas pelas diversas previsões questionáveis; isso, pois foi estabelecido regime de urgência em sua tramitação.
Em breve retrospectiva, o PL 3/2024, que a princípio cuidava apenas do regime falimentar, foi apresentado ao Plenário da Câmara em 10 de janeiro de 2024, teve sua relatoria designada em 3 de fevereiro de 2024, com apresentação de Relatório Substitutivo em 15 de março, recheado de amplas alterações que impactam profundamente processos recuperacionais, e ante a urgência determinada, foi votado e aprovado, com emendas, pela Câmara dos Deputados em 26 de março de 2024.
O trâmite açodado, que impediu o debate público, preocupa com razão o mercado de crédito, notadamente os vetores de financiamento do agronegócio. Tal se dá em especial ante alteração realizada[1] no §3º do artigo 49 da LRF, já aprovada pela Câmara. A previsão que seguirá ao Senado Federal muda a sistemática vigente dos ‘bens de capital essenciais’ que não podem ser expropriados pelos credores ao longo do período de suspensão de ações e execuções em face do devedor, o stay period.
Atualmente, a lei impede que bens de capital, ou seja, aqueles diretamente utilizados no processo produtivo pelo produtor rural e pela agroindústria (como maquinários agrícolas, veículos, silos, geradores), mesmo que outorgados em garantia fiduciária pelo devedor, sejam excutidos pelos credores ao longo do stay period. O texto do PL, por sua vez, insere na redação a expressão “ativos essenciais”, para determinar que “a venda ou a retirada, do estabelecimento devedor, de bens de capital e dos ativos essenciais à sua atividade empresarial, ainda que incorpóreos ou intangíveis.”
A preocupação setorial se concentra na expressão ‘ativos essenciais’, que deturpa a regra vigente e anula, por exemplo, recente entendimento do STJ de que produtos agrícolas não constituem bens de capital, dado que são justamente o produto final da atividade de produção rural (STJ, REsp. nº 1.991.989 – MA, 03.05.2022). Com a mudança, os produtos agrícolas podem ser avaliados como um ativo essencial em casos concretos.
A ampliação da proteção legal a qualquer ativo considerado essencial ao devedor entrega subjetividade e insegurança totais às recuperações judiciais e, quanto à cadeia de grãos, potencialmente anula a importância de instrumentos de financiamento setorial como a Cédula de Produto Rural (CPR), visto que passaria autorizar que o produtor rural que negociou antecipadamente sua produção em troca de insumos e/ou financiamento não entregue o produto agrícola ao credor, frustrando os elos seguintes da cadeia agroindustrial.
As possibilidades imprevisíveis de aplicação da proteção legal podem, ainda, afetar lastros de operações securitizadas, impedir o acesso pelos credores a recebíveis dados em garantia a títulos como o Certificado de Recebíveis do Agronegócio, em prejuízo aos investidores desses papeis e, em visão ampla, maculando o próprio sistema privado de financiamento do agronegócio.
Cabe ao Poder Legislativo refletir sobre a conveniência de votar de forma acelerada um projeto de lei que afeta temáticas absolutamente sensíveis e técnicas, sob pena de primeiro sepultar institutos jurídicos para, em seguida, fomentar escassez de crédito em setores fundamentais da economia.
[1] “§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada, do estabelecimento do devedor, de bens de capital e dos ativos essenciais à sua atividade empresarial, ainda que incorpóreos ou intangíveis, excluídos créditos e dinheiro.”